Comentários à monografia do Sr. Dr. Ricardo Henrique
Souto Fortes à moda de teoria crítica.
“ARISTÓTELES E UMA REFLEXÃO DA NATUREZA HUMANA”
Tenho um prazer extraordinário em analisar o presente trabalho por ter
sido escrito por um engenheiro com a característica objetividade da realidade
física (Φυσική), e com o distanciamento filosófico adequado (meta - μετα).
Inicio minha análise definindo metafísica (μετα τα Φυσική) por Kant, pois essa pesquisa procura algo que
sabemos tratar em práxis mas desconhecemos sua origem no
não real.
“A
razão humana em um determinado domínio dos seus conhecimentos, possui o
singular destino de se ver atormentada por questões que não pode evitar, pois
lhe são impostas pela sua natureza, mas às quais também não podem dar resposta
por ultrapassarem completamente as suas possibilidades” [1].
O objetivo da monografia analisada vem a ser uma
proposta ao departamento de Filosofia da PUC RJ, para uma tese de doutorado, é
a de definir o mal tal qual encontrado em Aristóteles.
Na história da filosofia ocidental, o mal tem sido
analisado tradicionalmente a partir de três dimensões diferentes: o mal
metafísico, o mal físico e o mal moral.
O mal metafísico tradicionalmente se
refere à finitude e à contingência humana, bem como à imperfeição e à falta de
ordenação em tudo que existe. Ele sublinha o descontentamento e a insatisfação
com a realidade humana, com a inépcia de aprender a prever o
futuro a partir da experiência histórica e com o mundo em que vivemos. Diz
também respeito ao carácter efêmero dos seres, um problema lógico como
existencial, e que se consubstancia na morte, símbolo por antonomásia do mal
metafísico.
Comentário: de modo a eliminar a lembrança permanente desse mal - a morte
- a mitologia nos "salva" através de seus deuses quando
mergulham os "filhos do instante" no rio do
esquecimento - o rio Lete, caso contrário passaríamos a vida toda lembrando
todo tempo do fim inevitável. Com o esquecimento momentâneo, ganhamos em Heidegger
o nome específico de Daisen (o existente angustiado).
O mal físico apresenta-se como dor e
sofrimento. A quantidade de sofrimento acumulado na história, a que se somam as
catástrofes naturais, as doenças e a dor causada pelo próprio homem, é
angustiante. O descontentamento com uma natureza indiferente e causadora de muitas
dores humanas se traduz pelos esforços práticos por dominá-la e controlá-la.
O mal moral que se coloca em
conexão com a liberdade e com a responsabilidade do homem. A história é
construída sobre o sofrimento.
O mal é produto das ações humanas, como a injustiça,
corrupção, opressão e tirania são seus expoentes radicais.
Surge assim o atributo maldade como atributo humano e
às vezes divino. O mal moral tem relação direta com os problemas e
consequências imediatas para a ética (como colocado na monografia), a
religião e a filosofia da história.
O homem sente-se culpado e vítima ao mesmo tempo pois
o mal moral nos apresenta um desafio. Por um lado, todos nós nos sentimos
culpados à medida que nos conscientizamos do mal que causamos. Por outro,
continuamos projetando o mal para fora de nós mesmos, procurando bodes
expiatórios individuais ou coletivos nos quais descarregar o seu peso.
Suscitar a questão da práxis humana significa debater
a problemática do mal:
a) o mal como evento ou acontecimento, e
b) o mal como interpelação de nossa responsabilidade
para com ele e questionamento acerca da realidade ou ilusão de liberdade.
A filosofia grega já atendia a essa problemática do
mal pela aplicação nos mitos procurando diversas propostas de solução. O
pensamento reflexivo, interpreta as tradições míticas pelo duplo viés da
racionalização/ secularização, e simultaneamente pela interpretação
alegorizante.
Para estudar onde o mal surge escolhi nosso mito
primordial ocidental, Adão em sua queda.
1. A queda adâmica.
Antes da queda quando Adão estava em seu estado
completo, com a perfeição de sua natureza e de suas noções inteligíveis,
ele não possuía a faculdade que se aplica às opiniões prováveis [belo
x bom, feio x mal].
Explico: estes termos são opiniões prováveis e
não coisas inteligíveis, pois não se diz “a terra esférica é bela”
ou “a terra plana é feia” diz-se que uma é “verdadeira” e a outra “falsa”. Pois
é, através da razão que o ser humano discerne o que verdadeiro e o que é falso,
e essa é a regra em relação a todas as coisas inteligíveis. Adão não
compreendia nem mesmo o que há de mais claro dentre as opiniões
prováveis como reprovável que é a exposição das partes intimas, ele
não compreendia o que haveria de reprovável nisto, mas quando desobedeceu a
D’us e se inclinou na direção dos desejos imaginários e dos prazeres dos
sentidos corporais, “aquela árvore era boa para se comer,
e desejável aos olhos”, ele foi punido com a privação da
compreensão intelectual mais perfeita, pois ele foi capaz de transgredir o
mandamento que lhe fora dado justamente por ele ser dotado de razão e liberdade,
e então obteve a compreensão das opiniões prováveis. Ele ficou
imerso na distinção entre o mau e o bom, e feio e o belo. Naquele momento, ele
entendeu o valor do que perdera, daquilo que lhe fora tirado e do estado no
qual caíra.
Por isto foi dito “sereis como Elohim, conhecedores do bem e do mal” e
não conhecedores do “falso e do verdadeiro”. Em relação ao que é
necessariamente objetivo não há “bom e mal”, e sim “falso e verdadeiro”.
Comento: Em alguns pontos apesar de utilizar a mitologia bíblica utilizo a
análise dos comentadores de Aristóteles. A frase acima está no comentário de
Rabi Moshe ben Mainon - bendita seja sua memória, nascido em Córdoba [2].
Aristóteles descreve [3] que “não se pode conhecer o
verdadeiro pelo falso, somente por outra verdade. Por isso, também a
demonstração que faz a ciência é pela verdade [Analíticos Posteriores no Organon].
A queda adâmica levou ao conhecimento do “mal” mostrando então que Adão
possuía potência (Δύναμη) em transgredir, e que recebeu de D’us o livre
arbítrio, enquanto no seu estado perfeito anterior à queda.
Posso concluir, portanto, que o mal passa existir a
partir da intenção (aqui reside a escolha) do
existente, como a partir de sua ignorância sobre as consequências dos atos.
Ora, se Adão foi criado à imagem e semelhança de D’us, isso pode nos
levar a supor que há potência em D’us, questão essa que obrigou Tomás de Aquino
a averiguá-la (4), mas a semelhança não é igualdade, pois há unicidade em D’us
(Ele é único), mas havia potência em Adão, não em D’us [7].
2. Seres Humanos
A potência que está aqui no Adão, é a potência genérica que compete à
criança: “ a criança, escreve Aristóteles, é potente no sentido de que deverá
sofrer uma alteração através da aprendizagem; pelo contrário, aquele que já
possui uma técnica não deve sofrer alteração alguma, mas é potente a partir de
uma hexis, que pode não pôr em ato ou atuar, passando de um
não ser em ato a um ser em ato”[4]
O que deveria então ser depreendido por Adão através do aprendizado? A
monografia nos ensina que é a virtude, pois a virtude é um hábito (ideia de
excelência obtida), uma prática à qual Adão não possuiu, e como os animais
deveria trabalhar para obter seu sustento, construir sua virtude e satisfazer
suas necessidades, o que lhe proporcionaria prazer, mas um prazer diferente
daquele prazer que sentia ao saciar um desejo imaginário que não se esgotava
jamais.
A monografia nos traz uma importante informação (pag. 13): o hábito da
virtude nos ensina a elaborar nossa escolha, seja vinculada à bondade ou à
maldade. O desejo pode ser bom ou ruim, a racionalização do desejo seria
direcionar o desejo, desejar corretamente, o que envolve deliberar, refletir.
Desse modo a virtude se manifesta pelos meios de se alcançar o objetivo, enquanto
o homem vicioso usará qualquer meio para chegar ao seu objetivo.
3. O mal moral
Na seção “Mal Moral” há a descrição sucinta por Aristóteles das
inúmeras personalidades dos homens maus e homens justos.
O Mal Moral como descrevi mais acima (injustiça, corrupção, opressão e
tirania) que hoje nos assola com uma intensidade nunca vista e de forma tão
sutil está descrito em trabalho aristotélico específico [9].
Devido a questões de espaço e por não ser fórum apropriado irei me
abster de comentar esse mal maior que afeta a sociedade brasileira desde o
tempo do getulismo onde sempre se procurou fazer crescer o Estado para dentro
da casa e da vida das pessoas (como último exemplo tivemos uma deputada
propondo que o Estado comprasse absorvente para mulheres):
“..um marxismo deformado, verdadeiro realejo ritual, tocado e
retocado por um clero ideológico que se diz tanto mais crítico quanto menos
exerce a verdadeira disciplina do pensamento crítico”[10].
Do texto da monografia temos: Aristóteles compreende o homem mau como
aquele que não alcança a maturidade ética, ou seja, é um ser malvado, que é
comparado a uma pessoa que permanece numa condição de analfabetismo moral.
Como definir o analfabetismo moral, (coexistente ao analfabetismo
funcional e ao analfabetismo existencial, mas não exploráveis aqui), enfim o
próprio Mal? Para responder poderemos examinar o conceito do estagirita
na Física onde exemplifica quando quem remove obstáculo ao
movimento passa a ser seu motor (ou seja, a causa do movimento). Por exemplo,
se alguém retira um apoio de debaixo de um peso e o peso cai devido a seu peso
“natural”, dizemos que quem retirou o apoio moveu o peso. Do mesmo modo,
diremos que aquele que faz cessar uma certa capacidade é o autor dessa
“privação” mesmo que essa “privação” não seja algo existente. Quem apaga uma
vela à noite origina a escuridão, quem destrói um olho causa a cegueira apesar
de a escuridão e a cegueira serem “privações”, e não necessitem de agentes.
“Eu formo a luz e crio a escuridão; Eu faço a paz e sou
Eu quem cria o Mal” (Isaias 45:7).
A escuridão e o Mal são privações. São ausências.
Não foi dito “faz a escuridão” e “faz o Mal”, pois não são coisas de
existência positiva, mas de existências negativas pois somente surgem na
ausência do outro.
[Estão grafados no Livro em hebraico os verbos assá (fazer)
e o verbo bore (criar), pois esta palavra pressupõe
o inexistente como em “No principio criou D’us os céus e a terra “ (Genêsis
1:1) ou seja não existia até então “céus e terra” que foram criados pela
privação ou ausência de algo que já existia, pois “Nada provém do Nada”].
“E viu D’us tudo que fez e eis que era muito bom” (Genêsis 1:31)
Podemos dizer assim de forma geral que todos os Males
são privações.
Os males, portanto, que os humanos infligem uns aos outros, por causa de
suas tendências, paixões, ideias e crenças procedem também das privações pois
todas resultam da ignorância, privação do conhecimento.
Novamente como disse o Bispo de Hipona:
“D’us não é o autor do mal, mas do livre arbítrio, que
é um bem” (4).
4. Da natureza humana
Com esse
tema, Natureza humana o texto da monografia descreve o
mecanismo de apreensão da realidade e do aprendizado das virtudes a partir das
observações e análises do estagirita.
A práxis nos
permite verificar que no dia a dia “..a gênese do mal não se vê, atesta-se e
constata-se numa narrativa mítica que liga indissociavelmente sentido e
acontecimento”.
Acertadamente o
texto da Monografia nos ensina a necessidade da vigilância constante ao longo
do caminho, pois “..a virtude se manifesta pelos
meios de se alcançar o objetivo”. E com isso, ensina o estagirita “ a lei deve
prescrever boas ações suscetíveis de desenvolver nos homens a prática de boas
ações que, realizadas de forma habitual, resultam em um carácter virtuoso, pois
o fim primeiro da lei á a virtude, uma vez que visa à prescrição de ações que,
praticadas habitualmente, podem desenvolver a virtude nos homens, tendo seu fim
último a eudaimonia ” na pág. 23.
Observo
aqui que a eudaimonia citada no texto da monografia
significaria a felicidade em português, contudo, em grego ela possui outro
significado “viver de acordo com a natureza”, pois a natureza (Φύση) para o grego, possui outro significado pois contempla
o mundo real que vivemos e outros mundos que ignoramos, seria por assim dizer a responsabilidade por uma ética
estabelecida mitologicamente ou religiosa (supremo bem humano)
que nos conduziria ao “paraíso”.
Em nossa sociedade a felicidade é confundida com o hedonismo, pois pode-se
constata a existência do "tudo o que me faz feliz é bom",
frase corriqueira de auto ajuda que pavimenta a estrada para os vícios e o
desregramento.
A
monografia nos ensina também o estabelecimento do aprendizado virtuoso em
Aristóteles que salienta o aspecto de “..habituação da prática da virtude ..
transforma o homem em um agente virtuoso de natureza qualitativa e que a
aquisição de virtudes éticas depende da maturidade do homem”. A maturidade aqui
é sinônimo de experiência e não de idade.
A
conclusão do tema que reputo como aprendizado na construção da virtude seria
que “..o nexo da proposta feita por Aristóteles é de que a construção do
conhecimento só é possível se esta estabelece um meio para a humanidade
encontrar a virtude".
5. O impuro – A mancha
Como o nosso autor da monografia Agostinho possuía a mesma intuição:
“Parecia-me muito vergonhoso acreditar que tínheis uma figura de carne
humana e que éreis contornado pelos traços corporais dos nossos membros. Porém
o principal e quase único motivo do meu erro inevitável era, quando desejava
pensar no meu D’us, não poder formar uma ideia dele, se não lhe atribuísse um
corpo, visto parecer-me impossível que houvesse alguma coisa que não fosse
material.
Daqui deduzia eu a existência de uma certa substância do mal que tinha a
sua massa feia e disforme, - ou fosse grosseira como a que chamam terra ou
ténue e subtil como o ar – a qual eu julgava ser o espírito maligno investindo
a terra. E porque a minha piedade, como quer que ela fosse, me obrigava a crer
que a bondade de D’us não criou nenhuma natureza má, estabelecia eu duas
substâncias opostas a si mesmas, ambas infinitas; a do mal mais diminuta e a do
bem mais extensa”. Temos aqui a definição da mancha da monografia
pensada pelo Bispo de Hipona [8].
Continua..
[1] Kant - Crítica
da Razão Pura – prefácio da 1ª. Edição (1871)
[2] Maimônides, Guia
dos perplexos – Parte 1, os grifos são meus
[3] Aristóteles, Metafísica –
Livro II 993b19-994b11
[4] Aristóteles Organon –
Analíticos Posteriores
(5) Agostinho, Livre
Arbítrio – Livro II
[6] Tomás de Aquino
– Comentário à Metafísica de Aristóteles I-IV – Vol. I
[7] Tomás de Aquino
– O Poder de D’us – questões disputadas 1-3
[8] Agostinho, Confissões –
Livro V, pag. 10
[9] Aristóteles, Da
Geração e da Corrupção/Convite à Filosofia
[10] José Guilherme
Merquior – Marxismo Ocidental – pág. 163
[11] Aristóteles, Física
[12] Kant – Lições sobre a doutrina
filosófica da religião – Ed.Vozes 2019.