quinta-feira, 21 de janeiro de 2021

O bezerro de ouro e o Marxismo

 O arquétipo revolucionário no Antigo Testamento. O salto da fé.


Dois aspectos: o amor e compaixão como ponte ou salto da fé, entre o conhecimento e o desconhecido. 


em um de seus trabalhos, o grande filosofo dinamarquês  Kierkegaard procura a resposta para três questões filosóficas: 

A ordem moral pode ser suspensa pela vontade de D-us? 

Existe um dever absoluto do homem para com D-us? 

Podia Abraão ocultar seu propósito às pessoas que lhe eram mais íntimas?

A mim foi desvelado o Marxismo em sua analogia com o bezerro de ouro adorado pelas tribos enquanto Moisés recebia as tábuas das leis no alto da montanha.



segunda-feira, 4 de maio de 2020

O MAL NA OBRA DE ARISTÓTELES

Comentários à monografia do Sr. Dr. Ricardo Henrique Souto Fortes à moda de teoria crítica.

“ARISTÓTELES E UMA REFLEXÃO DA NATUREZA HUMANA”

Tenho um prazer extraordinário em analisar o presente trabalho por ter sido escrito por um engenheiro com a característica objetividade da realidade física (Φυσική), e com o distanciamento filosófico adequado (meta - μετα).

Inicio minha análise definindo metafísica (μετα τα Φυσική) por Kant, pois essa pesquisa procura algo que sabemos tratar em práxis mas desconhecemos sua origem no não real.
 A razão humana em um determinado domínio dos seus conhecimentos, possui o singular destino de se ver atormentada por questões que não pode evitar, pois lhe são impostas pela sua natureza, mas às quais também não podem dar resposta por ultrapassarem completamente as suas possibilidades” [1].

O objetivo da monografia analisada vem a ser uma proposta ao departamento de Filosofia da PUC RJ, para uma tese de doutorado, é a de definir o mal tal qual encontrado em Aristóteles.

Na história da filosofia ocidental, o mal tem sido analisado tradicionalmente a partir de três dimensões diferentes: o mal metafísico, o mal físico e o mal moral.
mal metafísico tradicionalmente se refere à finitude e à contingência humana, bem como à imperfeição e à falta de ordenação em tudo que existe. Ele sublinha o descontentamento e a insatisfação com a realidade humana, com a inépcia de aprender a prever o futuro a partir da experiência histórica e com o mundo em que vivemos. Diz também respeito ao carácter efêmero dos seres, um problema lógico como existencial, e que se consubstancia na morte, símbolo por antonomásia do mal metafísico.

Comentário: de modo a eliminar a lembrança permanente desse mal - a morte -  a mitologia nos "salva" através de seus deuses quando mergulham os "filhos do instante" no rio do esquecimento - o rio Lete, caso contrário passaríamos a vida toda lembrando todo tempo do fim inevitável. Com o esquecimento momentâneo, ganhamos em Heidegger o nome específico de Daisen (o existente angustiado).

mal físico apresenta-se como dor e sofrimento. A quantidade de sofrimento acumulado na história, a que se somam as catástrofes naturais, as doenças e a dor causada pelo próprio homem, é angustiante. O descontentamento com uma natureza indiferente e causadora de muitas dores humanas se traduz pelos esforços práticos por dominá-la e controlá-la.

 O mal moral que se coloca em conexão com a liberdade e com a responsabilidade do homem. A história é construída sobre o sofrimento.
O mal é produto das ações humanas, como a injustiça, corrupção, opressão e tirania são seus expoentes radicais.
Surge assim o atributo maldade como atributo humano e às vezes divino. O mal moral tem relação direta com os problemas e consequências imediatas para a ética (como colocado na monografia), a religião e a filosofia da história.
O homem sente-se culpado e vítima ao mesmo tempo pois o mal moral nos apresenta um desafio. Por um lado, todos nós nos sentimos culpados à medida que nos conscientizamos do mal que causamos. Por outro, continuamos projetando o mal para fora de nós mesmos, procurando bodes expiatórios individuais ou coletivos nos quais descarregar o seu peso.
Suscitar a questão da práxis humana significa debater a problemática do mal: 
a) o mal como evento ou acontecimento, e
b) o mal como interpelação de nossa responsabilidade para com ele e questionamento acerca da realidade ou ilusão de liberdade.
A filosofia grega já atendia a essa problemática do mal pela aplicação nos mitos procurando diversas propostas de solução. O pensamento reflexivo, interpreta as tradições míticas pelo duplo viés da racionalização/ secularização, e simultaneamente pela interpretação alegorizante. 
Para estudar onde o mal surge escolhi nosso mito primordial ocidental, Adão em sua queda.
1.    A queda adâmica.
Antes da queda quando Adão estava em seu estado completo, com a perfeição de sua natureza e de suas noções inteligíveis, ele não possuía a faculdade que se aplica às opiniões prováveis [belo x bom, feio x mal].

Explico:  estes termos são opiniões prováveis e não coisas inteligíveis, pois não se diz “a terra esférica é bela” ou “a terra plana é feia” diz-se que uma é “verdadeira” e a outra “falsa”. Pois é, através da razão que o ser humano discerne o que verdadeiro e o que é falso, e essa é a regra em relação a todas as coisas inteligíveis. Adão não compreendia nem mesmo o que há de mais claro dentre as opiniões prováveis como reprovável que é a exposição das partes intimas, ele não compreendia o que haveria de reprovável nisto, mas quando desobedeceu a D’us e se inclinou na direção dos desejos imaginários e dos prazeres dos sentidos corporais, “aquela árvore era boa para se comer, e desejável aos olhos”, ele foi punido com a privação da compreensão intelectual mais perfeita, pois ele foi capaz de transgredir o mandamento que lhe fora dado justamente por ele ser dotado de razão e liberdade, e então obteve a compreensão das opiniões prováveis. Ele ficou imerso na distinção entre o mau e o bom, e feio e o belo. Naquele momento, ele entendeu o valor do que perdera, daquilo que lhe fora tirado e do estado no qual caíra. 

Por isto foi dito “sereis como Elohim, conhecedores do bem e do mal” e não conhecedores do “falso e do verdadeiro”. Em relação ao que é necessariamente objetivo não há “bom e mal”, e sim “falso e verdadeiro”. 

Comento: Em alguns pontos apesar de utilizar a mitologia bíblica utilizo a análise dos comentadores de Aristóteles. A frase acima está no comentário de Rabi Moshe ben Mainon - bendita seja sua memória, nascido em Córdoba [2].

Aristóteles descreve [3] que “não se pode conhecer o verdadeiro pelo falso, somente por outra verdade. Por isso, também a demonstração que faz a ciência é pela verdade [Analíticos Posteriores no Organon].
A queda adâmica levou ao conhecimento do “mal” mostrando então que Adão possuía potência (Δύναμη) em transgredir, e que recebeu de D’us o livre arbítrio, enquanto no seu estado perfeito anterior à queda.
O maior comentador de Platão foi Agostinho que nos socorre ensinando que

“D’us não é o autor do mal, mas do livre arbítrio, que é um bem” (4).

Daí direi a título de prolegômenos aos comentários:

Posso concluir, portanto, que o mal passa existir a partir da intenção (aqui reside a escolha) do existente, como a partir de sua ignorância sobre as consequências dos atos.

Ora, se Adão foi criado à imagem e semelhança de D’us, isso pode nos levar a supor que há potência em D’us, questão essa que obrigou Tomás de Aquino a averiguá-la (4), mas a semelhança não é igualdade, pois há unicidade em D’us (Ele é único), mas havia potência em Adão, não em D’us [7].

2.    Seres Humanos


A potência que está aqui no Adão, é a potência genérica que compete à criança: “ a criança, escreve Aristóteles, é potente no sentido de que deverá sofrer uma alteração através da aprendizagem; pelo contrário, aquele que já possui uma técnica não deve sofrer alteração alguma, mas é potente a partir de uma hexis, que pode não pôr em ato ou atuar, passando de um não ser em ato a um ser em ato”[4]
O que deveria então ser depreendido por Adão através do aprendizado? A monografia nos ensina que é a virtude, pois a virtude é um hábito (ideia de excelência obtida), uma prática à qual Adão não possuiu, e como os animais deveria trabalhar para obter seu sustento, construir sua virtude e satisfazer suas necessidades, o que lhe proporcionaria prazer, mas um prazer diferente daquele prazer que sentia ao saciar um desejo imaginário que não se esgotava jamais.
A monografia nos traz uma importante informação (pag. 13): o hábito da virtude nos ensina a elaborar nossa escolha, seja vinculada à bondade ou à maldade. O desejo pode ser bom ou ruim, a racionalização do desejo seria direcionar o desejo, desejar corretamente, o que envolve deliberar, refletir. Desse modo a virtude se manifesta pelos meios de se alcançar o objetivo, enquanto o homem vicioso usará qualquer meio para chegar ao seu objetivo.

3.    O mal moral

Na seção “Mal Moral” há a descrição sucinta por Aristóteles das inúmeras personalidades dos homens maus e homens justos.  
O Mal Moral como descrevi mais acima (injustiça, corrupção, opressão e tirania) que hoje nos assola com uma intensidade nunca vista e de forma tão sutil está descrito em trabalho aristotélico específico [9].
Devido a questões de espaço e por não ser fórum apropriado irei me abster de comentar esse mal maior que afeta a sociedade brasileira desde o tempo do getulismo onde sempre se procurou fazer crescer o Estado para dentro da casa e da vida das pessoas (como último exemplo tivemos uma deputada propondo que o Estado comprasse absorvente para mulheres):
 “..um marxismo deformado, verdadeiro realejo ritual, tocado e retocado por um clero ideológico que se diz tanto mais crítico quanto menos exerce a verdadeira disciplina do pensamento crítico”[10]. 
Do texto da monografia temos: Aristóteles compreende o homem mau como aquele que não alcança a maturidade ética, ou seja, é um ser malvado, que é comparado a uma pessoa que permanece numa condição de analfabetismo moral.

Como definir o analfabetismo moral, (coexistente ao analfabetismo funcional e ao analfabetismo existencial, mas não exploráveis aqui), enfim o próprio Mal? Para responder poderemos examinar o conceito do estagirita na Física onde exemplifica quando quem remove obstáculo ao movimento passa a ser seu motor (ou seja, a causa do movimento). Por exemplo, se alguém retira um apoio de debaixo de um peso e o peso cai devido a seu peso “natural”, dizemos que quem retirou o apoio moveu o peso. Do mesmo modo, diremos que aquele que faz cessar uma certa capacidade é o autor dessa “privação” mesmo que essa “privação” não seja algo existente. Quem apaga uma vela à noite origina a escuridão, quem destrói um olho causa a cegueira apesar de a escuridão e a cegueira serem “privações”, e não necessitem de agentes.

“Eu formo a luz e crio a escuridão; Eu faço a paz e sou Eu quem cria o Mal” (Isaias 45:7).

A escuridão e o Mal são privações. São ausências.

Não foi dito “faz a escuridão” e “faz o Mal”, pois não são coisas de existência positiva, mas de existências negativas pois somente surgem na ausência do outro.

[Estão grafados no Livro em hebraico os verbos assá (fazer) e o verbo bore (criar), pois  esta palavra pressupõe o inexistente como em “No principio criou D’us os céus e a terra “ (Genêsis 1:1) ou seja não existia até então “céus e terra” que foram criados pela privação ou ausência de algo que já existia, pois “Nada provém do Nada”].

“E viu D’us tudo que fez e eis que era muito bom” (Genêsis 1:31)

Podemos dizer assim de forma geral que todos os Males são privações.

Os males, portanto, que os humanos infligem uns aos outros, por causa de suas tendências, paixões, ideias e crenças procedem também das privações pois todas resultam da ignorância, privação do conhecimento.

Novamente como disse o Bispo de Hipona:

“D’us não é o autor do mal, mas do livre arbítrio, que é um bem” (4).


4.    Da natureza humana

Com esse tema, Natureza humana o texto da monografia descreve o mecanismo de apreensão da realidade e do aprendizado das virtudes a partir das observações e análises do estagirita.
A práxis nos permite verificar que no dia a dia “..a gênese do mal não se vê, atesta-se e constata-se numa narrativa mítica que liga indissociavelmente sentido e acontecimento”.
Acertadamente o texto da Monografia nos ensina a necessidade da vigilância constante ao longo do caminho, pois “..a virtude se manifesta pelos meios de se alcançar o objetivo”. E com isso, ensina o estagirita “ a lei deve prescrever boas ações suscetíveis de desenvolver nos homens a prática de boas ações que, realizadas de forma habitual, resultam em um carácter virtuoso, pois o fim primeiro da lei á a virtude, uma vez que visa à prescrição de ações que, praticadas habitualmente, podem desenvolver a virtude nos homens, tendo seu fim último a eudaimonia ” na pág. 23.
Observo aqui que a eudaimonia citada no texto da monografia significaria a felicidade em português, contudo, em grego ela possui outro significado “viver de acordo com a natureza”, pois a natureza (Φύσηpara o grego, possui outro significado pois contempla o mundo real que vivemos e outros mundos que ignoramos, seria por assim dizer a responsabilidade por uma ética estabelecida mitologicamente ou religiosa (supremo bem humano) que nos conduziria ao “paraíso”.

Em nossa sociedade a felicidade é confundida com o hedonismo, pois pode-se constata a existência do "tudo o que me faz feliz é bom", frase corriqueira de auto ajuda que pavimenta a estrada para os vícios e o desregramento.

A monografia nos ensina também o estabelecimento do aprendizado virtuoso em Aristóteles que salienta o aspecto de “..habituação da prática da virtude .. transforma o homem em um agente virtuoso de natureza qualitativa e que a aquisição de virtudes éticas depende da maturidade do homem”. A maturidade aqui é sinônimo de experiência e não de idade.
A conclusão do tema que reputo como aprendizado na construção da virtude seria que “..o nexo da proposta feita por Aristóteles é de que a construção do conhecimento só é possível se esta estabelece um meio para a humanidade encontrar a virtude".


5.    O impuro – A mancha

Como o nosso autor da monografia Agostinho possuía a mesma intuição:
“Parecia-me muito vergonhoso acreditar que tínheis uma figura de carne humana e que éreis contornado pelos traços corporais dos nossos membros. Porém o principal e quase único motivo do meu erro inevitável era, quando desejava pensar no meu D’us, não poder formar uma ideia dele, se não lhe atribuísse um corpo, visto parecer-me impossível que houvesse alguma coisa que não fosse material.

Daqui deduzia eu a existência de uma certa substância do mal que tinha a sua massa feia e disforme, - ou fosse grosseira como a que chamam terra ou ténue e subtil como o ar – a qual eu julgava ser o espírito maligno investindo a terra. E porque a minha piedade, como quer que ela fosse, me obrigava a crer que a bondade de D’us não criou nenhuma natureza má, estabelecia eu duas substâncias opostas a si mesmas, ambas infinitas; a do mal mais diminuta e a do bem mais extensa”.  Temos aqui a definição da mancha da monografia pensada pelo Bispo de Hipona [8].

Continua..


[1] Kant - Crítica da Razão Pura – prefácio da 1ª. Edição (1871)
[2] Maimônides, Guia dos perplexos – Parte 1, os grifos são meus
[3] Aristóteles, Metafísica – Livro II 993b19-994b11
[4] Aristóteles Organon – Analíticos Posteriores
(5) Agostinho, Livre Arbítrio – Livro II
[6] Tomás de Aquino – Comentário à Metafísica de Aristóteles I-IV – Vol. I
[7] Tomás de Aquino – O Poder de D’us – questões disputadas 1-3
[8] Agostinho, Confissões – Livro V, pag. 10
[9] Aristóteles, Da Geração e da Corrupção/Convite à Filosofia
[10] José Guilherme Merquior – Marxismo Ocidental – pág. 163
[11] Aristóteles, Física
[12] Kant – Lições sobre a doutrina filosófica da religião – Ed.Vozes 2019.

terça-feira, 8 de agosto de 2017


Como esse mundo humano ocupa o primeiro termo na perspectiva do meu mundo, vejo todo o resto dele, minha vida e a mim mesmo, através dos Outros-deles. E como eles ao meu redor não cessam de agir, manipulando as coisas e sobretudo falando, isto é, operando sobre elas, eu projeto sobre a realidade radical de minha vida tudo aquilo que vejo eles fazerem e ouço dizerem- de tal modo que aquela minha realidade radical, tão minha e só minha, fica coberta aos meus próprios olhos por uma crosta formada pelo que é recebido dos outros homens,  por seus tumultos e dizeres, e me habituo a viver normalmente de um mundo presumido ou verossímil criado por eles, que costumo tomar, sem mais, por autêntico e considerar como a realidade mesma. Só quando minha docilidade àquilo que os Outros Homens fazem e dizem me leva a situações absurdas, contraditórias ou catastróficas, me pergunto o que há de verdade em tudo isso, ou seja, retiro-me momentaneamente da pseudo-realidade, da convencionalidade em que convivo com eles, à autenticidade de minha vida como radical solidão. De modo que, num ou noutro graus, dose e frequência, vivo efetivamente uma vida dupla, cada uma delas com sua própria óptica e perspectiva. E se observo ao meu redor, suspeito que a cada um dos Outros acontece o mesmo, mas – e isso é de notar – a cada um em dose diferente. Há quem viva quase que só a pseudo-vida da convencionalidade e há, ao contrário, casos extremos em que entrevejo ao Outro energicamente fiel à sua autenticidade. Entre ambos os pólos se dão todas as equações intermediárias, pois trata-se de uma equação entre o convencional e o autêntico, que tem cifras distintas em cada um de nós. Além do mais, em nosso primeiro momento de trato com o Outro, sem nos darmos conta especial disso, calculamos sua equação vital, ou seja, quanto há nele de convencional e quanto de autêntico.

Mas, notem, mesmo no caso de máxima autenticidade, o indivíduo humano vive a maior parte de sua vida no pseudo-viver da convencionalidade circundante ou social. E como os Outros são “os Homens” – eu em minha solidão não poderia me chamar com um nome genérico como “homem” - , resulta que vejo o Mundo, minha vida e a mim mesmo segundo as fórmulas deles, isto é, vejo tudo isso tingido pelos outros homens, impregnado de sua humanidade, em suma, humanizado – esta palavra agora tem valor neutro; não sugere se isso, o Mundo  humanizado segundo o evangelho dos humanos, que são os Outros, é coisa boa ou má. Só um ponto é taxativo: esse mundo humanizado pelos outros não é meu autêntico mundo, não tem uma realidade inquestionável, é só amis ou menos verossímil, ilusório em muitas de suas partes, e me impõe o dever, não ético mas vital, de submetê-lo periodicamente a depurações, a fim de que cada coisa seja posta em seu lugar, cada uma com o coeficiente de realidade ou irrealidade que lhe corresponde. Essa técnica de depuração inexorável é a filosofia.

( O HOMEM E OS OUTROS – ORTEGA Y GASSET)

domingo, 17 de janeiro de 2016

Férias


Entrei na sede da fazenda com as botas encharcadas que me lembravam das frieiras com seus germes nadando nas meias molhadas.

Coloquei a espingarda no lugar errado e abri a geladeira. Peguei uma garrafa d’água.

Uma sucupira encontrava-se sentada na poltrona da sala. De pernas cruzadas, me olhou com tédio.

- Temos um jeito de acabar com as frieiras – disse o monstro.

O homem que tinha medo de alma penada estava de pé, à frente da porta ao fundo da grande sala, segurava um lençol e um facão. Ficou ali me olhando com curiosidade.

- Mas vosmecê tem de ser corajoso e crente, sinhô – disse a sucupira.

Uma guerra e uma lágrima me chamaram a atenção, mas voltei às palavras da sucupira.

- Arrume um cobertor, um pouco de cachaça e fogo. Cubra a cabeça com o cobertor. Molhe as frieiras com a cachaça e coloque fogo. O Sinhô deve apagar o fogo abafando com o cobertor quando sentir dor.

Agora dois cardumes de maçambê passaram por sobre minha cabeça. Cavalas e gaivotas os perseguiam. Todos de argila.

Desconheço, ó amiguinhos, por quanto tempo fiquei no alto da casa flertando com as palmas dos coqueiros, lindas maquiadas pela luz do sol. Bom, “tenho de viajar”, resolvi descendo para o mangue em busca do portal inoxidável, ortogonal e quântica.  Criaturas jovens e perfeitas flanavam na superfície da água. Guardavam o portal.com. br.

- Posso passar por ali?

- Mostre suas armas – disse um deles.

Somos três cavaleiros dispostos a tomar a cidadela inimiga. Os sitiados arremessam óleo aquecido em nosso caminho. Cavalos perdidos e, portanto, seguimos a pé, com o flautista à frente, em busca do mago.

Apresentamos as três garrafas de banho de descarrego, as sereias balançaram os cabelos e o portal se abriu.

 Água quente com peixes nervosos, ocupados com seus negócios me mordiam os pés.

 

 

 

 

 

 

-

 

domingo, 20 de dezembro de 2015


Poeminha escrito

 

A escrita,

A linguagem do ausente,

Pois não sente

A vertigem

Da possibilidade

Da presença

poeminha distante


Tudo que amo muito

Guardo lá no fundo

Protegido do mundo

Guardo tanto

Tão fundo

Que as vezes não sei mais

O que amo

segunda-feira, 2 de novembro de 2015

A visita do demônio

Meu demônio me visitou hoje.
Para variar queria me matar ou me prejudicar como sempre, afinal é sua natureza. Queria que usasse a navalha. Cortasse meu rosto.
O corte seria de cima para baixo passando pelo olho. Chegaria à bochecha. Ele riu quando disse que eu poderia escolher o lado, minha língua ficaria aparente pelo rasgo. Queria me mutilar.
Nunca disse seu nome.
Não estou nem aí, hoje o venci, por isso estou tranquilo.
O demônio, assim como os anjos não possuem livre arbítrio. É a natureza dele.
Dei um chega pra lá nele. É um cara forte, domina vários homens.
Acredito que tenho de vence-lo todo dia.

Não se ganha do demônio, apenas o adormece.