terça-feira, 8 de agosto de 2017


Como esse mundo humano ocupa o primeiro termo na perspectiva do meu mundo, vejo todo o resto dele, minha vida e a mim mesmo, através dos Outros-deles. E como eles ao meu redor não cessam de agir, manipulando as coisas e sobretudo falando, isto é, operando sobre elas, eu projeto sobre a realidade radical de minha vida tudo aquilo que vejo eles fazerem e ouço dizerem- de tal modo que aquela minha realidade radical, tão minha e só minha, fica coberta aos meus próprios olhos por uma crosta formada pelo que é recebido dos outros homens,  por seus tumultos e dizeres, e me habituo a viver normalmente de um mundo presumido ou verossímil criado por eles, que costumo tomar, sem mais, por autêntico e considerar como a realidade mesma. Só quando minha docilidade àquilo que os Outros Homens fazem e dizem me leva a situações absurdas, contraditórias ou catastróficas, me pergunto o que há de verdade em tudo isso, ou seja, retiro-me momentaneamente da pseudo-realidade, da convencionalidade em que convivo com eles, à autenticidade de minha vida como radical solidão. De modo que, num ou noutro graus, dose e frequência, vivo efetivamente uma vida dupla, cada uma delas com sua própria óptica e perspectiva. E se observo ao meu redor, suspeito que a cada um dos Outros acontece o mesmo, mas – e isso é de notar – a cada um em dose diferente. Há quem viva quase que só a pseudo-vida da convencionalidade e há, ao contrário, casos extremos em que entrevejo ao Outro energicamente fiel à sua autenticidade. Entre ambos os pólos se dão todas as equações intermediárias, pois trata-se de uma equação entre o convencional e o autêntico, que tem cifras distintas em cada um de nós. Além do mais, em nosso primeiro momento de trato com o Outro, sem nos darmos conta especial disso, calculamos sua equação vital, ou seja, quanto há nele de convencional e quanto de autêntico.

Mas, notem, mesmo no caso de máxima autenticidade, o indivíduo humano vive a maior parte de sua vida no pseudo-viver da convencionalidade circundante ou social. E como os Outros são “os Homens” – eu em minha solidão não poderia me chamar com um nome genérico como “homem” - , resulta que vejo o Mundo, minha vida e a mim mesmo segundo as fórmulas deles, isto é, vejo tudo isso tingido pelos outros homens, impregnado de sua humanidade, em suma, humanizado – esta palavra agora tem valor neutro; não sugere se isso, o Mundo  humanizado segundo o evangelho dos humanos, que são os Outros, é coisa boa ou má. Só um ponto é taxativo: esse mundo humanizado pelos outros não é meu autêntico mundo, não tem uma realidade inquestionável, é só amis ou menos verossímil, ilusório em muitas de suas partes, e me impõe o dever, não ético mas vital, de submetê-lo periodicamente a depurações, a fim de que cada coisa seja posta em seu lugar, cada uma com o coeficiente de realidade ou irrealidade que lhe corresponde. Essa técnica de depuração inexorável é a filosofia.

( O HOMEM E OS OUTROS – ORTEGA Y GASSET)